Cascudo - Biblioteca Virtual

Entrevistas
  • Texto: Oleone Coelho Fontes

    Fotos: Ana Maria Cascudo

     

    Desde os primeiros dias deste mês o Rio Grande do Norte se acha em festa, com razão, pois o maior monumento vivo daquele estado – Luís da Câmara Cascudo – está completando hoje, 80 anos de vida, grande parte da qual dedicada fielmente ao estudo da cultura popular.

    O Conselho Estadual de Cultura, o Instituto Histórico e Geográfico, a Fundação José Augusto, o Museu Câmara Cascudo e o Centro de Ensino Superior Câmara Cascudo, bem como o jornalista Paulo Macedo, do Diário de Natal, programaram uma série de homenagens ao mestre octogenário.

    Todas as obras de Cascudo (num total de 300 livros de etnografia e folclore, dele e de outros autores), foram expostas ao público. O governo do Rio Grande do Norte e a Universidade Federal, por outro lado, convidaram estudiosos da obra do mestre folclorista para, em Natal, proferirem palestras sobre vida e obra do homenageado, entre os quais Dieguez Júnior, Austregésilo de Athaíde, Arthur César Ferreira Reis, Nilo Pereira, Gilberto Freire e Fagundes Menezes. Inaugurou-se no salão nobre da Academia Norte-Riograndense de Letras um medalhão com sua efígie. E no dia de hoje o nome de Luís da Câmara Cascudo está sendo inserido no Livro do Mérito Nacional, por solicitação do governador Tarcísio Maia ao presidente Geisel, em atendimento a apelo formulado pela comissão encarregada das festividades.

    Historiador, etnógrafo, folclorista, sociólogo, ensaísta, professor, jornalista, tradutor-comentarista, memorialista, cronista e romancista de costumes, é o próprio Cascudo que, em suas obras, nos fala do seu nascimento:

    “Nasci numa sexta-feira, dia de São Sabino, 30 de dezembro de 1898, às 5,30 da tarde. Meu primeiro banho foi com água morna numa bacia de ágata. Água temperada com vinho do Porto, para eu ficar mais forte e um patacão de prata do Império, para não faltar dinheiro”.

    No seio de sua própria família, Cascudo iria encontrar farto material e abundante motivação para, mais tarde, se tornar estudioso de tradições, crendices, superstições:

    “Fui menino magro, pálido, enfermiço. Cercado de dietas e restrições alimentares. Proibiram-me movimentação na lúdica infantil. Não corria. Não saltava. Não brigava. Nunca pisei em areia, nem andei descalço. Jamais subi uma árvore. Cuidado com fruta quente, sereno e vento encanado”.

    E nos informa ainda com muita graça e espírito:

    “Padeci todas as enfermidades folclóricas, espinhela caída, cobreiro, entalo, dormir com os olhos abertos, como os coelhos, mijo de maritaca, dentada de caranguejeira, frieira por ter pisado em caruru, verruga por apontar estrelas”.

    O LABORATÓRIO

    O professor Luís da Câmara Cascudo, todavia, por pouco não paga preço elevado por interessar-se por fenômenos ligados à cultura popular. Como titular da cadeira de História do ex-Atheneu Norte-Riograndense, certa ocasião, um seu colega de magistério pede ao presidente da Província, Juvenal Lamartine, a sua demissão, por considerar uma indignidade um professor do respeitável educandário andar estudando lobisomens, catimbó e demais crendices.

    Luís da Câmara Cascudo tem levado sua vida e com ela o seu trabalho, em sua cidade Natal. Oportunidades, apelos, sugestões não lhe têm faltado para que se transfira para maiores centros, onde seriam maiores as facilidades. Ele, no entanto, se tem recusado peremptoriamente a abandonar o seu burgo, particularmente o seu casarão da Rua Junqueira Ayres, 377, onde vive, confinado em sua biblioteca de mais de 20 mil obras, todas lidas e anotadas. Mesmo hoje, aos 80 anos, completamente surdo (as perguntas que o repórter lhe dirigiu tiveram que ser escritas), quase cego (não lê senão com o auxílio de uma lupa), ainda trabalha cerca de 10 horas por dia.

    Ali em Natal seus amigos são também elementos de suas obras: vaqueiros, pescadores, cantadores, macumbeiros, pretas velhas, seresteiros, contadores de histórias antigas, gente humilde da praia, do brejo e do sertão.

    - Para colaborar com a minha próxima obra, Superstições no Brasil – diz ele – fui obrigado a puxar muitos amigos pelos cabelos. A parte referente à Bahia, por exemplo, confiei à folclorista Hildegardes Viana.

    A obra em apreço trata de superstições nos vários ramos da atividade humana: medicina, futebol, cinema, aviação, etc.

    “Não há ninguém em Natal – observa Nilo Pereira – que não ouça Cascudo, que não o procure para debater problemas, ou simplesmente, que não vá vê-lo na posse olímpica do seu dom de conversar”.

    - Sabe, baiano, eu começo chamando os que me visitam de senhor ou senhora. Daí a pouco estou familiarizado e passo a tratá-lo de menino. D. Lucy Geisel, quando aqui esteve, depois de muito conversarmos dei conta de mim tratando-a de “menina”.

    Os que visitam mestre Cascudo sabem que ele, quando quer dar por finda a conversa, diz, com humor: “Agora vá baixar em outro terreiro”.

    - O Presidente Kubitscheck ao me visitar foi uma das coisas que não se esqueceu de mencionar: “Mestre, eu sei que vosmicê costuma dizer vá baixar em outro terreiro, quando o papo começa a demorar. Pode fazer o mesmo comigo”. Imagine se eu iria botar porta a fora o presidente Juscelino.

    Grande “causeur”, assim o descreve Américo de Oliveira Costa.

    “Brilhante, maleável, versátil, rumoroso, tentacular, de um poder raro na elaboração discursiva, a voz plena de inflexões e sonoridades polarizadoras, não lhe falta, a Cascudo, inclusive a gesticulação adequada e oportuna”.

    Sobre sua oficina, onde convive com as entidades que o espírito do povo criou e conservou, nos informa:

    “...seu gabinete de trabalho, que semelha um laboratório, ressoa de comunicações, mensagens, consultas, respostas, vindos ou partidos para todos os quadrantes do mundo, universidades, centros de pesquisas e técnicas de relações sociais; casas, editoras, bibliotecas, estudiosos de todas as ciências do homem”. E continua:

    -“E a sua casa, enfim, o seu gabinete de estudo e laboratório criador, seu santo dos santos, sempre de portas abertas, cordial e acolhedor, a receber, inevitavelmente, quantas personalidades ilustres por aqui transitem, onde ao entrar, no entanto, sempre se experimenta, também, a vaga sensação de estar interrompendo algum trabalho? Estranho e fabuloso gabinete, cheio de imagens antigas, totens, amuletos, efígies, bichos empalhados, coisas de madeira de Chico Santeiro, coisas de barro de Mestre Vitalino de Caruaru, vaqueiros, rendeiras, cangaceiros, bonecos-gente do povo, animais, retratos, máscaras, diplomas, condecorações, instrumentos bárbaros, facas lavradas, desenhos, flâmulas, moedas, panos pintados, estatuetas africanas, bronzes asiáticos, ídolos bizarros, objetos de índios, fósseis milenares – e livros, livros, livros, um mar, uma terra, um mundo de matéria impressa...”.

    Teve a sensação de interromper algum trabalho, o repórter ao penetrar no casarão da Junqueira Ayres, onde vive o mestre, no convívio erudito com o sobrenatural que encanta e povoa a sensibilidade popular. No entanto, sou recebido com alegria e até com uma ponta de emoção.

    Na sala de espera um sem número de fotografias de Mário de Andrade, Rui Barbosa, a repórter Lena Frias, entre outros. O retrato de Rui Barbosa (1849-1923) está dedicado a Cascudo por D. Maria Augusta, viúva do Conselheiro. Heitor Villa-Lobos (1887-1959), que em vida foi grande amigo do folclorista norte-riograndense, dedicou-lhe uma foto nos seguintes termos: “uma boa testa para levar um cascudo amigo”.

    À pergunta inicial, Cascudo pede tempo, como um guerreiro pede paz, levantando a bandeirinha branca, “enquanto me refaço da emoção de, por intermédio de um baiano, reencontrar a Bahia”.

    - Vivi tempos inesquecíveis e maravilhosos na Bahia. Tenho por aquela terra gratas e saudosas recordações. Morei na Baixa dos Sapateiros, numa casa defronte ao Corpo de Bombeiros, no Gravatá.

    Relembra velhos amigos, todos desaparecidos, fazendo referência carinhosa “ao bravo Simões Filho e à enciclopédia Afrânio Peixoto”.

    Lembra-se o repórter do velho Estácio de Lima, e indaga-se Cascudo com ele se teria relacionado.

    - Ora, Estácio de Lima é moleque de ontem. Eu me refiro a gente velha, menino.

    A conversa termina por girar em torno dos fenômenos por ele estudados:

    - Os negros – afirma – muito ao contrário do que se poderia imaginar, são irradiadores e não carregadores de cultura. Exemplifica Iemanjá que não é criação negra, mas branca.

    Em Tradição, Ciência do Povo, diz: “A popularíssima Iemanjá é branca, loura, de olhos azuis, o tipo da ondina germânica do Reno”. Em outro passo, comentaria: “Iemanjá, orixá fluvial da Nigéria - Daomé, tornada égide marítima, sereia do Mediterrâneo com a devoção afro-brasileira, recebe o seu presente, em fevereiro e outubro, atirado às ondas, como Ino-eocotéia em Creta, Megara, Epidauro, Limira, na Lacônia, onde a oferta mergulhando anunciava o assentimento da deusa, antecedente ritualístico para a égide sudanesa”.

    Mas a Bahia é uma atração permanente, e Cascudo volta ao tema:

    - É interessante – relembra – em 1918, quando vivi na Bahia, não existia a palavra umbanda. Edson Carneiro, no Vocabulário Popular da Bahia, não registra o vocábulo. É claro, muita coisa que hoje existe na Bahia, não existia no meu tempo, casquinha de siri, por exemplo.

    Ao homem que dedicou grande parte de sua vida ao estudo de crendices, superstições, magias brancas e negras, catimbó e envultamento, indagamos:

    - Afinal de contas, mestre, você é ou não é supersticioso?

    Ele é preciso e fiel a seus princípios.

    - Sou supersticioso como toda a gente que nega ser.

    E daí a pouco, repórter e mestre se acham de tal modo envolvidos, numa conversa gostosa, que ele chega a observar para sua filha Ana Maria:

    - Se o papa bater em minha porta, diga a ele que vá baixar em outro terreiro. Meu combustível baiano acaba de beber todinho.

    SUPERSTIÇÕES

    Ninguém poderá no Brasil estudar qualquer fenômeno de natureza popular, sem ter que necessariamente consultar Luís da Câmara Cascudo, indiscutivelmente o maior repositório de conhecimentos no Brasil.

    A superstição tem sido o seu alimento intelectual, em mais de cinqüenta anos de exaustiva pesquisa e estudo criterioso. O mestre depõe:

    “A superstição sempre constituiu para mim uma das mais sedutoras indagações da cultura popular. Como fui filho único, doente e triste, amamentou-me o leite de todas as crendices populares. Rezas-fortes, banhos de cheiro, meizinhas serenadas, cascas de tronco do lado-que-o-sol-nasce; velhas praieiras esconjurando como na Caldéia, os demônios da febre incontáveis; negros, altos e magros como coqueiros solitários, defumando meu leito, o aposento, meus brinquedos móveis, o cavalo de pau de talo de carnaúba, o navio de papelão, a coruja retangular de papel, rezador vindo da Serra da Raiz, dos brejos, areias de Maracajaú, pé-dos-morros, pondo rosários no meus pescoço, indulgenciados por aqueles teólogos sem papa e sem Concílio”.

    São dele os vários conceitos e sentenças sobre superstições.

    “Não há momento na história do mundo sem a presença inevitável da superstição”.

    “A superstição é uma técnica de caráter defensivo, no plano mágico, legítima defesa contra as forças adversas”.

    “A crença na possibilidade do milagre, a intervenção do sobrenatural atraído pelas rogativas ou formulários propiciatórios, consiste numa base homogênea e confiante, orientando a súplica para qualquer dos poderes capazes de atender ao supremo pedido”.

    Com precisão científica, Cascudo nos esclarece:

    “O Inconcebível pode ser verídico e a impossibilidade depende da extensão do nosso entendimento. Não existe apenas o que não acreditamos. O não-compreender exclui a recusa existencial. Negamos as verdades dos antigos, como os vindouros recusarão as nossas. O povo, como as crianças, e os ‘videntes’, têm a coexistência com o impossível, para nós. O incrível é uma fronteira na ignorância assimiladora. A imaginação popular é memória viva das ciências aposentadas pela notoriedade”.

    “O supersticioso apenas obedece à mecânica de processos milenares, escapando ou dispensando, totalmente, a colaboração do raciocínio contemporâneo”.

    “Os gestos mais novos têm mais de dois mil anos”.

    Diferentemente do que poderíamos imaginar, não foram os povos de cultura mais primitiva (indígenas, negros), que nos legaram todo o acervo de crendices e superstições, mas o branco colonizador. Cascudo, uma vez mais, nos ilumina:

    “No Brasil as superstições que atendem a todo o território nacional foram trazidas pelos colonizadores. Não há um mito ou uma crendice ameraba ou negra que haja alcançado toda a população brasileira”.

    E acrescenta:

    “Como os europeus trouxeram o boi, a vaca, o carneiro, a cabra, cavalo, porco, galo, galinha, cães e gatos, coelhos e ratos, todas as superstições relativas embarcaram com a bicharia pra o Novo Mundo”.

    A propósito de bichos, em Canto de Muro, obra inteiramente fora do gênero de Cascudo, por uns considerada romance de costume, por outros um “bestiário”, encontramos um depoimento curioso:

    “O padre Frederico Pastors M. F. S. enviou em 1930 pelo dirigível Graf Zepelim alguns ovos de galinha, para pessoas amigas em Altenessen, Prússia Renânia. Nasceram galinhas e um galo. Este, enquanto viveu, cantava pelo horário dos galos brasileiros, quatro horas de diferença. Não houve convivência que fizesse aderir ao fuso europeu reinante na Alemanha. Fora exportado em ovo. Nem sempre a ecologia explica as coisas”.

    FOLCLORE E CATIMBÓ

    Em seu livro Meleagro, Luís da Câmara Cascudo estuda um fenômeno curioso em cultura popular, praticamente desconhecido na Bahia, mas muito procurado no Rio Grande do Norte e em outros estados do Nordeste, por legião de adeptos, o catimbó. Ele explica o catimbó como sendo “a bruxaria sem recorrer ao diabolismo medieval”.

    “Há uma percentagem impressionante de consulentes de macumbas e catimbós antes, durante e depois de procurar o médico especialista. E vezes os dois tratamentos são paralelos, culpando um ao outro a ineficácia pela indevida aplicação da técnica rival”.

    Antônio da Silva Melo (1886-1973), em prefácio a Meleagro diz que as “superstições e a magia estão cheias de documentos de valor, sem dúvida alguma apropriados para mostrar a trajetória do espírito humano, através do tempo e do espaço do que essa horrível e desinteressante História da Humanidade, que não se tem ocupado quase senão de guerras e da estúpida sucessão dos poderosos”.

    Para Cascudo, o “folclore é uma ciência da psicologia coletiva, com seus processos de pesquisa, seus métodos da classificação, sua finalidade em psiquiatria, educação, história, sociologia, administração, política e religião”.

    Ele considera ainda o folclore “o mais abandonado e pejorativo dos assuntos culturais brasileiros”.

    Tipo dos mais característicos do folclore brasileiro, o escritor de literatura de cordel, encontrado cantando nas feiras do Nordeste ou mercando seu produto, é estudado pelo mestre norte-riograndense, que diz de sua história:

    “O cantador é descendente do aedo da Grécia, do rapsodo ambulante dos helenos, do glee-man anglo-saxão, dos monganis e metris árabes, do ventálica da Índia, das runóias da Finlândia, dos bardos armoricanos, dos scaldos da Escandinávia, dos menestréis, trovadores, mestres cantores da Idade Média”.

    Enfim, sobre o mestre que, neste século, granjeou a fama de ser um dos mais importantes folcloristas do mundo, depuseram:

    Miguel de Unamuno via na sua obra “una vision movimentada y colorida en el Folklore Brasileño”.

    Levy-Bruhl, observou ser Cascudo “un jeune et brillant maître dans le Folk-lore américain”.

    Ralph Steele Boggs afirma que Cascudo “is anable na discerning folklorist with literary sensibility”.

    Fonte: Jornal A Tarde, Caderno 2, Salvador, Sábado, 30 de dezembro de 1978.

  • Rosina D’Angina

    - Sou uma coisa rara. Sou sabidamente um velho bem humorado. É porque a surdez põe muito de distância, arminho e pelúcia no pensamento. Hoje, só ouço quem eu quero.

    Assim se manifesta Luís da Câmara Cascudo, que completa hoje 81 anos de idade e de brasilidade. Escritor, historiador, folclorista, etnógrafo, crítico, sociólogo, orador, conferencista, professor catedrático de Direito Internacional Público e fundador da Academia Norte-Riograndense de Letras, Mestre Cascudo está sempre pronto a dizer uma “cascudiana fora do texto”. É um homem que não desanimou de viver. Muito mais do que isso: acha a vida cheia de encantos.

    O segredo da longevidade? Rir sempre que possível. “O diabo é infeliz porque não sabe rir”. E, ainda, dar dimensões líricas às coisas vulgares.

    Eternamente rodeado por estudantes, professores, autoridades, personalidades, Mestre Cascudo, sentado em sua cadeira de balanço, muito à vontade no seu pijama de bolinhas ou de listras, fumando um interminável charuto, não perdeu a agilidade de jornalista, do início de carreira, e quem acaba sendo entrevistada é a repórter. Ao lado da cadeira, uma mesinha, onde há sempre lápis e papel, para que o visitante se comunique com ele:

    - Me chamam de escritor, mas quem vem a esta casa, depois que fiquei surdo, é que merece ter este nome. Agora eu sou um falador. Falo mais que uma jandaia ou uma araponga. E quer saber da vantagem desta surdez? Só ouço, agora, com o coração. Gosto do silêncio e aliás, sempre escrevi à noite e de madrugada. Hoje só sei fazer as pesquisas e escrevo como quem copula: com muito amor.

    E Mestre Cascudo deve continuar pesquisando noite adentro, porque continua afixada à porta do casarão centenário da Rua Junqueira Aires, em Natal, no Rio Grande do Norte, a placa com os dizeres: “O PROFESSOR CÂMARA CASCUDO NÃO RECEBE PELA MANHÔ, entre diversas outras e que foi presente de amigos sabedores de que o Mestre passava a maioria das noites acordado, estudando.

    Dona Dáhlia, namorada e esposa de Cascudo há meio século, testemunha essa preferência do marido: “Nós tínhamos horários muito diferentes, porque ele trabalhava até o amanhecer. Em uma noite chuvosa acordei e tive vontade de ficar a seu lado. Fui até a biblioteca, levantei a cortina, sem que ele me visse. Estava tão absorto que compreendi que ali estava o escritor e não o homem. Se eu o chamasse iria abrir a porta do pombal e os pombos sairiam em revoada (como ele me explicara). Fechei a cortina e voltei para o quarto”.

    Dona Dáhlia faz questão de dizer que a companheira de um escritor tem o dever de renunciar e de se doar, enquanto vai mostrando a coleção de condecorações do Mestre, guardadas em uma velha e valiosa cristaleira, ou a assinatura de Juscelino Kubitschek, em meio àquelas dos alunos, em uma parede da sala, ou a foto com dedicatória a Cascudo de Ruy Barbosa ou de Villa-Lobos, e, ainda, o troféu Juca Pato, concedido pela União Brasileira de Escritores, de São Paulo, em 1977.

    Como maior admiradora do marido, dona Dáhlia está sempre presente em todas as entrevistas e visitas, que não são poucas, pois logo começa à tarde, a campainha da Junqueira Aires não pára de tocar e vai explicando que o Mestre não consegue compreender as palavras nem pelo movimento dos lábios. Entretanto, qualquer pessoa pode observar, pela luminosidade de seu olhar de águia, que o Mestre ouve, e muito bem, com os olhos.

    “Amamos esta casa. Nela nos casamos e nela nasceram nossos filhos. Imaginem que uma imobiliária quis comprá-la e ofereceu em troca um apartamento no 15º andar de um edifício. Imaginem só! Ia ficar longe do pôr-do-sol do rio Potengi”, exclama Câmara Cascudo.

    Câmara Cascudo, que entre outras comendas, medalhas, títulos e troféus, foi condecorado pelo Vaticano, dá um sorriso simpático antes de dizer: “Eu, um pecador profissional, ganhando essa condecoração. Em Natal eu sou o único pecador profissional. Os outros são amadores. O que é pecado? Ora, pecado é a favor da natureza. É tudo o que contraria o dogma e é tudo aquilo que gostamos”.

    Sua mulher se aproxima e Cascudo continua com seu bom humor: “Nem amor e nem mulher têm idade. A idade da mulher é moldada pelo carinho de seu homem e meu tio Chico Pimenta costumava dizer que mulher só é feia da cintura para cima”.

    Quanto à sua própria idade, Cascudo afirma que não vai completar 81 anos, mas sim 4 vezes 20, mais 1. Talvez isso elucide sua frase de que “um homem é invariavelmente a soma de muitos homens que nele vivem”.

    Modesto, possui uma fórmula mágica para fugir ao elogio de corpo presente: “É mentira, mas é gostoso”.

    Dele disse Jorge Amado: “Estivéssemos num tempo menos melancólico e limitado, estivéssemos num tempo de democracia e cultura, e por toda parte do Brasil seriam levantados monumentos a esse homem que atravessou sua existência (pobre de bens materiais, mas rica de alegria criadora) no estudo e na invenção da Pátria, da verdadeira Nação brasileira, do homem brasileiro. Temos muitos escritores importantes, sábios de alta qualidade, artistas magníficos, temos intelectuais de grande valor. Mestre, porém, temos poucos. Mestres no sentido amplo da palavra: construtores da verdade brasileira, como Câmara Cascudo”.

    O moço inquieto, que causava problemas no Atheneu Norte-Riograndense, com suas pesquisas sobre lobisomens e outros bichos suspeitos, hoje, nos seus 81 anos diz que sua tarefa passou a ser de reler e corrigir seus livros, para próximas edições. Está no prelo, para ser publicado em segunda edição “Dante Alighieri e a Tradição Popular no Brasil”. Cascudo explica que assuntos e episódios da Divina Comédia estão presentes nas tradições brasileiras.

    Quanto à superstição, Cascudo diz que só não acredita em lobisomens em uma sala iluminada, mas que “num tabuleiro sertanejo, juremas, viajando sozinho a cavalo, altas horas da noite, uivos de raposa nos nervos, luar negaceante multiplicando as sombras, acredito. E você também”.

    Menino ainda, despertou para os costumes, lendas e tradições do nordestino e do povo brasileiro. Começou trabalhando no jornal A Imprensa, em 1918. Formado em Direito, pela Faculdade do Recife, aos 30 anos, provinciano incurável, segundo Afrânio Peixoto, mergulhou nos livros, ligado à sua terra e à sua gente.

    Viajou para o Exterior diversas vezes, a fim de observar e colher material. Se identificou com a poesia e os costumes dos vaqueiros e cantadores e produziu mais de 100 livros e cerca de 3 mil artigos. Entre suas obras o Dicionário do Folclore Brasileiro, que Carlos Drummond de Andrade chama simplesmente de “Cascudo”, alegando que ele aparece para decidir a parada: “Nele está a alma do Brasil em suas heranças mágicas, em suas manifestações rituais, seu comportamento em face do mistério e da realidade comezinha”.

    Aliás, o Mestre diz que o que sempre o interessou na vida foi a vida do povo na sua normalidade e conseguiu descobrir as permanências da vida brasileira. Cascudo sempre escreveu um livro pensando no seguinte: “Sabe como surgiu o Dicionário do Folclore? Era um caderninho de notas para facilitar meu trabalho. Foi crescendo tanto que quando me apercebi já estava com um trabalho pronto”.

    Um homem feliz em sua terra

    Folha – Apesar de ter sido convidado a lecionar em diversas universidades do País e até em outras famosas do estrangeiro, por que preferiu ficar em Natal?

    CASCUDO – O Nordeste e, especificamente Natal, é o meu laboratório. Aqui manipulei todo o material colhido no resto do mundo. Nunca poderia abandonar minha terra. Deixaria de ser um homem feliz.

    Folha – Por qual motivo deixou de aceitar o convite para disputar uma cadeira na Academia Brasileira de Letras?

    CASCUDO – Não poderia tornar-me membro da Academia porque sou surdo profissionalmente e porque moro na província. Minha freqüência seria hipotética, não é?

    Folha – O que é folclore?

    CASCUDO – Folclore é cultura popular, coletiva e hereditária, milenar e contemporânea.

    Folha – Como passa o seu tempo, atualmente? Continua a abolir a rotina?

    CASCUDO – Lendo e atendendo a quem me vem visitar. Quanto à rotina, só trabalho, durmo e como “quando me dá a la santíssima gana”.

    Folha – Recebe muitas cartas? Responde a todas?

    CASCUDO – Recebo mais de 100 cartas por dia, mas não posso responder a todas elas porque não haveria tempo. Mas leio-as todas.

    Folha – Por que não contrata uma secretária?

    CASCUDO – Acabaria me apaixonando pela menina.

    Folha – Como vê a universidade?

    CASCUDO – A universidade é plasmadora de culturas, em defesa ascensional da civilização. Ela deve valorizar, estudar, defender a civilização do Brasil. Primeiro, porque é bela, sugestiva, original, humana. Segundo, porque é nossa. Se da universidade não parte a  valorização humana da ciência adquirida e sua aplicação nobre e digna, então está jurando solidariedade e aliança-cúmplice com todos os elementos que anoitecem o mundo e espalham, na amplidão das cidades e dos campos, a imutabilidade do signo da angústia, da insatisfação, do desalento, do pessimismo, desfibrador e responsável por tantos males e maremotos sociais.

    Fonte: Jornal Folha de S. Paulo Ilustrada, 4º Caderno, São Paulo, Domingo, 30 de dezembro de 1979.

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